Chegado ou chego? Falado ou falo? (Opa!)

melhor chegoChegado é o único particípio do verbo chegar que a norma culta admite no Brasil e em Portugal.

Existem verbos de duplo particípio, chamados abundantes, como aceitar (aceitado e aceito) e gastar (gastado e gasto), mas chegar não pertence ao clube.

O particípio chego é uma criação popular documentada por linguistas em diferentes regiões de nosso país, em frases como “Quando distribuíram as senhas, eu ainda não tinha chego”.

Em versão substantivada, chego também tem forte presença na língua oral informal, numa expressão como “dar um chego”, isto é, “dar um pulo, uma passada” em algum lugar.

Mesmo assim, chego não encontra acolhida entre os gramáticos nem tem tradição de uso pelos chamados bons autores.

Caso semelhante é o de trago, particípio informal de trazer, de uso igualmente corriqueiro em frases como “Perguntei se ela tinha trago (por trazido) o presente” – e também condenado na norma culta.

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Registram-se outras criações populares parecidas, ainda que menos disseminadas, como perco (particípio de perder) e falo (particípio de falar), no Brasil, e caço (particípio de caçar) em Portugal.

Vale notar que existe uma regularidade na formação desses “particípios irregulares” sem pedigree: como ocorre com os (legítimos) aceito, gasto, pago e outros, a forma do particípio popular coincide com a do presente do indicativo da primeira pessoa do singular: eu chego, eu trago, eu perco, eu falo, eu caço…

Não é improvável que, com o tempo, algumas dessas formas emergentes acabem encontrando abrigo na língua culta. O mundo dos particípios irregulares sempre conviveu com boa dose de instabilidade.

Pego, particípio irregular do verbo pegar, é aceito pelos gramáticos no Brasil (mas não em Portugal). Pode ser que um dia chego siga os passos de pego, mas hoje isso não parece perto de ocorrer.

Realizou o escopo dos estrangeirismos semânticos?

melhor realizeiOs linguistas falam em estrangeirismo semântico quando uma palavra do vernáculo ganha novo sentido por influência de outra língua.

Essas acepções novatas podem ser vistas como deselegantes e até denotar um domínio linguístico precário. Os menos tolerantes chegam – com certa razão – a apontar no fenômeno sinais de subserviência cultural.

Nada disso impede a vitória dos estrangeirismos semânticos quando um número expressivo de falantes os adota.

Eis alguns casos de anglicismos semânticos que se encontram em estágios variados de aceitação, uns dicionarizados, outros não, mas todos candidatos a um futuro pacífico entre nós:

Realizar com o sentido de “compreender, dar-se conta de” (to realize);

Planta na acepção de “instalação industrial” (plant);

Painel como “grupo de pessoas reunidas para um debate público” (panel);

Assumir com o sentido de “presumir, supor” (to assume).

Escopo (tradicionalmente, “meta”) na acepção de “alcance, abrangência” (scope).

Não, eu não gosto de nada disso. Consolo-me com o fato de que não sou – ninguém é – obrigado a empregar tais palavras em suas acepções anglófilas.

Mas é como na velha tirada sobre as bruxas: que elas existem, existem.

Crise = perigo + oportunidade + papo furado

'Weiji' nas formas tradicional (linha de cima) e simplificada
‘Weiji’ nas formas tradicional (linha de cima) e simplificada

Toda crise é, segundo aquilo que o dicionário de lugares-comuns chamaria de “milenar sabedoria chinesa”, uma mistura de perigo e oportunidade, certo? Errado.

A ideia faz sucesso porque é reconfortante. Hoje no Brasil, por exemplo, não seria um consolo pensar que estamos afundados até o pescoço em excelentes oportunidades?

Infelizmente, não é verdade que a palavra chinesa weiji, “crise”, seja um ideograma formado pelo casamento do preocupante “perigo” (wei) com o promissor “oportunidade” (ji). Filólogos de mandarim não se cansam de denunciar o equívoco (aqui e aqui, por exemplo), mas ele tem sido duro na queda.

Embora signifique oportunidade quando se junta a hui para formar jihui, o ideograma ji, sozinho, nada tem de positivo. Entre seus sentidos está o de momento crucial. Bingo: “momento crucial de perigo” é uma boa definição de crise e uma tradução sóbria de weiji.

Dizem que a culpa original pelo sucesso do mal-entendido é do presidente americano John Kennedy (1917-1963), que gostava de repetir a lenda em seus discursos. Desde então, consultores empresariais, autores de livros de autoajuda e outros profissionais do lero-lero se revezam na missão de impedir que essa pérola erudita de plástico caia no esquecimento.

‘Alunxs’ vale como provocação, mas que feio, Pedro II!

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Uma semana em que o tradicional Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, adere ao suposto novo gênero neutro defendido por grupos feministas e LGBTs e pespega um “alunxs” em aviso da coordenação (foto do Globo, que noticiou o caso aqui) é uma semana ruim para a língua brasileira.

Não porque se trate de um caso de “novilíngua à (sic) serviço da agenda gay marxista”, como esbravejou um site evangélico, ou outras bobagens do gênero.

Vamos reconhecer logo: como provocação, tomada de posição política, expressão iconoclasta da liberdade de moldar a língua, o xis vale. A arroba que também se usa com frequência no mesmo papel é uma solução claramente superior (“alun@s”), mas tudo bem. Valem os dois.

O problema é que, como proposta de intervenção gramatical, esse xis (ou essa arroba) tem tanto valor quanto um emoji, um coraçãozinho que significa “amo”, um blz no lugar de “beleza”. Isto é, valor nenhum. Por razões poderosas e puramente linguísticas, nada a ver com ideologia, está condenado a ser um modismo esquecido em futuro não muito distante, como esquecidas foram as travessuras linguísticas do Seu Creysson.

“Alunxs” é um termo agramatical que inverte a ordem natural dos fatores de qualquer língua (começa escrito para depois ser oral) e, o que é pior, fracassa antes de atingir a oralidade. Como se pronuncia isso? Como se escreve, tratando-se de um par de dois gêneros, algo simples como “os dois”? “Xs dxxs”? Mas que trágico esse genocídio das vogais numa língua que tanto as ama, não? E de que forma resolver as flexões mais complexas em que os gêneros exigem números diferentes de caracteres, como “alunos lindões e alunas lindonas”? “Alunxs lindoxs” ou “lindoxxs”? (Melhor evitar, pensando bem. Vão dizer que é assédio.)

Digamos que até aí esteja valendo. Nem só de gramática vive o homem (e a mulher e o transexual e todo o etc. do mundo). Pinta o bigode na Mona Lisa quem quiser, pois entre outras coisas a língua é isso mesmo: uma caixa de Lego para o falante e um campo de batalha simbólica para diferentes grupos de interesse.

O que torna a semana triste para o português brasileiro é ver um colégio respeitável como o Pedro II, onde lecionaram gramáticos do tamanho de Said Ali e Celso Cunha, entre outros, se render de forma acrítica ao modismo.

Não é este o papel de uma instituição de ensino que se leva a sério. Perdendo-se a chance de usar “alunxs” como ponto de partida para uma reflexão profunda sobre o idioma, quem vai explicar ao pessoal que todo esse barulho se baseia numa visão ingênua da língua (gênero gramatical é uma coisa, sexualidade é outra) e que o famoso “machismo ancestral” embutido no plural “alunos” é, do ponto de vista da gramática histórica, uma balela?

Com a palavra, o linguista Aldo Bizzocchi (artigo completo aqui):

…a razão pela qual usamos o gênero masculino para nos referir a homens e mulheres não é ideológica, mas fonética. Em latim, havia três gêneros – masculino, feminino e neutro –, cujas terminações mais frequentes eram ‑us, ‑a e ‑um. O chamado gênero complexo, que agrupa substantivos de gêneros diferentes, era indicado em latim pelo neutro.

Quando, por força da evolução fonética, as consoantes finais do latim se perderam, as terminações do masculino e do neutro se fundiram, resultando nas desinências portuguesas ‑o e ‑a, características da maioria das palavras masculinas e femininas, respectivamente. Ou seja, o nosso gênero masculino é também gênero neutro e complexo. Portanto, não há nada de ideológico, muito menos de machista, na concordância nominal do português.

Dito isso, e mandando a modéstia passear, acrescento que jamais será uma semana de todo ruim para o português brasileiro aquela que viu nascer um espaço virtual onde tudo isso pode ser debatido “sem caretice e sem vale-tudo” – bom, pelo menos eu tentei. Que venham as pedras inescapáveis.

(A) que horas ela volta? (Em) que ano estamos mesmo?

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“Que horas ela volta?” O nome do filme indicado para representar o Brasil no Oscar tem um “erro de português”? Na língua culta, é evidente que sim. A gramática formal exigiria preposição: “A que horas ela volta”. Só que partir daí para dizer com ares alarmistas que o filme deixa o Brasil “mal na foto” – como fez neste artigo a jornalista Dad Squarisi, veterana colunista de português dos Diários Associados – é, este sim, um equívoco constrangedor. Revela visão curta sobre como a língua funciona.

O título do filme, tirado da fala de um personagem, está em registro coloquial. “Que ano você nasceu”, “Que série você estuda?” e frases do gênero são familiares a todos os brasileiros, mesmo os de alto grau de escolaridade. Falantes educados sabem – sem precisar pensar nisso – em que situações pega bem ou pega mal usá-las. Será preciso reafirmar a esta altura do século 21 que obras de arte têm liberdade para “transgressões” muito maiores?

Pretender que o título de um longa-metragem de ficção tenha obrigatoriamente o mesmo grau de formalidade de um editorial de jornal ou relatório de firma revela um jeito carrancudo e autoritário de compreender o funcionamento não só da língua, mas da arte também. Imagine (I can’t get no) Satisfaction, a famosa canção dos Rolling Stones, sendo corrigida pelo revisor da gravadora: “No, Mick, you CANNOT get ANY satisfaction”. E o que seria feito de “No meio do caminho tinha uma pedra”, o maravilhoso verso “errado” do Drummond?