Juizeco: o tamanho da pequenez

1477764259517A língua portuguesa tem gosto especial pela ambivalência de diminutivos e aumentativos. Como se sabe, os sufixos que alteram o grau de substantivos e adjetivos podem funcionar de forma literal, ou seja, com diminutivos e aumentativos cumprindo respectivamente os papéis de… diminuir e aumentar, pois é. Diminuir e aumentar sobretudo o tamanho, claro, mas também o valor ou a importância de algo. Acontece que os mesmos sufixos também podem dar uma cambalhota em que o diminutivo é usado para carinhosamente exaltar, enaltecer, dar relevo, enquanto o aumentativo amesquinha, deprecia, ironiza. Acordar cedinho é acordar muito cedo – não pouco. E o poetastro, aumentativo de poeta, é um poeta horroroso.

Nossa galeria histórica de jogadores de futebol é rica em exemplos dessa inversão. Hoje o protocolo dos nomes dos atletas anda mais conservador, mais próximo do registro civil, mas os craques do passado carregavam frequentemente a marca diminutiva de seu talento maior: Zizinho, Didi, Zico e Ronaldinho são bons exemplos. Por outro lado, jogadores valorizados mais pela força física do que pela habilidade com a bola, diversos deles francamente grossos, eram muitas vezes reconhecidos pelo aumentativo do nome. Pensando no futebol, corremos o risco de concluir que a fixação em sufixos de função diminutiva e aumentativa seja uma excentricidade brasileira. Não é bem assim.

Talvez tenhamos reforçado e dado novos desdobramentos a uma tendência da língua a brincar com “inhos” e “ões”, mas esta já estava presente na literatura lusitana entre o século XVI e o início do XVII, quando se forjou o português moderno. Frei Luís de Sousa falou carinhosamente em “esfarrapadinho inocente” e em “surdinho”. Nos Lusíadas, Camões vê a certa altura “levantar-se no ar um vaporzinho”. Os aumentativos também eram frequentes, quase sempre em tom pejorativo. Sá de Miranda gostava de adornar suas comédias com termos como “toleirão” (homem muito tolo) e “frieirão” (indiferente, frio em excesso).

É nesse relevo de contrastes marcantes entre o cômico e o sentimental, apontado por Said Ali em sua Gramática histórica da língua portuguesa, que devemos encaixar a forma derrisória pela qual o presidente do Senado, Renan Calheiros (foto), se referiu na segunda-feira, 24, ao juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara da Justiça Federal de Brasília, que dias antes havia autorizado a ação da Polícia Federal em que quatro policiais legislativos foram presos por suspeita de obstruir a Lava Jato: juizeco.

O sufixo “eco” está longe de ser um dos mais empregados no mundo dos diminutivos em língua portuguesa. Perde para “inho/zinho”, é claro, mas também para “ito/zito” – este mais usado em Portugal – e até para “ola”, “ote” e “ete/eta”. Foi recorrendo a “ete”, aliás, que Renan Calheiros, investigado em uma penca de inquéritos na Lava Jato, ampliou no mesmo fôlego seu repertório diminutivo-xingatório ao dizer que o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, que tinha feito críticas à Polícia Legislativa, comportava-se como um “chefete de polícia”. Para decepção dos caçadores de cacófatos, nenhum dos personagens assim atacados pelo presidente do Senado revidou na mesma moeda, o que poderia adicionar ao vocabulário daquilo que a imprensa tratou como um princípio de crise institucional o infeliz termo “politicozinho”.

De todo modo, foi mesmo “juizeco”, palavra mais cômica, inusitada e eloquente do que chefete, que levou a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Carmen Lúcia, a dar na mesa um soco figurado: “Onde um juiz for destratado, eu também sou”. Mesmo sendo pouco numerosas, são bastante coerentes as palavras que dão circulação mais ampla ao sufixo esculhambador escolhido por Renan para comprar briga com o Judiciário. A tensão institucional se dissipou em parte na quinta, 27, quando uma liminar do ministro Teori Zavaski suspendeu os efeitos da operação da PF. Restaram no ar o eco do juizeco e a certeza de que todas as palavras formadas com esse sufixo têm conotação desdenhosa – ou algo bem próximo disso. A ambiguidade não encontra solo fértil aqui.

Em geral ninguém tem dúvida sobre a intenção depreciativa do falante que menciona um timeco (time ruim), um jornaleco (jornal inexpressivo ou desonesto) ou um padreco, religioso apequenado que um personagem de João Ubaldo Ribeiro ajudou a imortalizar assim no clássico Viva o Povo Brasileiro: “Independente de ser padre, sou homem bem nascido, não posso ser comparado a um padreco desses que vêm do interior”. Uma exceção a essa regra parece ser “brilhareco”, que figura em todos os dicionários com a acepção de “grande brilho, atuação brilhante”, lado a lado com o sentido que acredito ser hegemônico no uso contemporâneo – o de “pequeno brilho, ação de pouco mérito ou que alardeia um valor superior ao que tem”. Seja como for, é sem dúvida ao lado do padreco ridículo do escritor baiano, e curiosamente com o mesmo tom de “sabe com quem está falando?”, que devemos colocar o juizeco do acuado presidente do Senado.

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Artigo publicado em minha coluna no caderno Aliás, do “Estadão”.

Campanha: da paz à guerra

No caso das campanhas eleitorais – e lá vamos nós outra vez – a associação é mais ou menos transparente: há armamento pesado (quase sempre em sentido figurado, ainda bem) e uma sensação difusa de que vale tudo pela vitória, até que no fim, sem apelação, o campo se divide entre vencedores e vencidos. Nem sempre a ideia de guerra se deixa ver de modo tão evidente nos múltiplos usos que a atarefada palavra “campanha” encontra no mundo de hoje, mas é mesmo no campo de batalha, no deslocamento das tropas, nas estratégias de ataque e defesa de antigos exércitos que devemos procurar o núcleo de sentido em torno do qual brotaram a campanha política, a de marketing, a de vacinação, a esportiva, a beneficente, a educativa, a de arrecadação de fundos, a de difamação ou qualquer outra em que prevaleça a ideia de um trabalho contínuo, coletivo e orquestrado rumo a um fim específico. Na mais genérica das muitas definições trazidas pelo dicionário Houaiss, campanha é a “soma de esforços feitos para se atingir um determinado objetivo”.

Se por trás de toda campanha de hoje em dia podemos vislumbrar as colunas de fumaça, a poeira e o alarido de velhas campanhas militares, o mais curioso é que por trás do sentido bélico da palavra, ainda mais antigo do que ele, entrevemos também uma vasta e bucólica extensão de terra cultivada ou coberta de pasto, entre casinhas esparsas. Isso mesmo: uma paisagem rural profundamente associada à ideia de paz. Foi com o sentido plácido de “campo aberto, planície” que a palavra “campanha” desembarcou em nossa língua, em meados do século XVI, vinda do latim tardio campania. Os termos “campo” e “campina” pertencem à mesma família.

O dicionário Trésor de la Langue Française deixa mais clara a ideia corporificada originalmente na palavra campagne ao dizer que ela se opõe “às florestas, às montanhas e ao mar”. Ou seja: a campagne era o nome da natureza domada, suave e acolhedora. Que parece mais acolhedora ainda quando se sabe que brotou da mesma fonte o vinho espumante que aportuguesamos como “champanhe”: grafia assumida por campagne no francês antigo, a palavra Champagne deu nome a uma região no nordeste do país, hoje compreendida na província de Champagne-Ardenne, e por metonímia à famosa bebida borbulhante lá produzida.

Neste ponto estará desculpado quem, pensando na paz do campo e em uma vida idílica regada a taças de vinho fresco, ceder a uma pergunta retórica: “Ah, por que as palavras precisam ser tão inquietas? Por que não se satisfazem com seus sentidos de origem?”. A resposta óbvia – porque herdam a inquietude dos seres humanos, seus criadores – não chega a explicar nada, mas resta o consolo de que faz sentido histórico o salto mortal que, em algum momento do século XVII, o vocábulo “campanha” deu de sua acepção pastoril para dentro do campo de batalha. A relação entre os dois mundos não poderia ser mais direta: era na campanha, no campo aberto, que os exércitos se enfrentavam.

Talvez simplificando a questão um pouquinho além da conta, o dicionário etimológico de Douglas Harper expõe a questão assim no verbete campaign, fruto inglês da mesma árvore latina ao lado do italiano campagna e do espanhol campaña: “Os exércitos de antigamente passavam o inverno no quartel e ganhavam os ‘campos abertos’ para guerrear no verão”. Estações do ano à parte, a campanha (militar) começava quando as tropas iam para a campanha (literal, geográfica). E foi assim que uma palavra de paz virou uma palavra de guerra.

Certa vez o escritor Jorge Luis Borges fez pouco da etimologia, do estudo da origem das palavras, afirmando tratar-se de um conhecimento desprovido de sentido prático. De que adianta saber – argumentou o gênio argentino – que o cálculo renal e o cálculo matemático compartilham a ideia de “pedrinha”, sentido literal do latim calculus, e que antes da invenção dos números usavam-se pedrinhas para calcular, se isso “não nos permite dominar os arcanos da álgebra”? Dessa vez, coisa rara, o autor de O Aleph mostrou ter visão curta. O que a etimologia ilumina não é o campo de conhecimento nomeado pela palavra posta sob seu microscópio. O que ela ajuda a elucidar é a própria linguagem, ou seja, o processo de associação de ideias que desenha nossas estruturas mentais e nos constitui como seres pensantes.

É evidente que conhecer a história da palavra “campanha”, para usar o raciocínio de Borges, não habilita ninguém a exercer nenhuma das atividades profissionais associadas a seus campos semânticos – a de fazendeiro, a de soldado ou qualquer outra. Mas parece inegável que se tornará um pouquinho mais sábio quem aprender, por exemplo, que a equiparação da campanha eleitoral a uma guerra surgiu primeiro no inglês americano: data de 1809 nos EUA, segundo o dicionário histórico de William A. Craigie e James R. Hulbert, o primeiro registro conhecido da palavra (no caso, campaign) com o sentido de “atividade política antes de uma eleição, marcada por ações organizadas destinadas a influenciar os votantes”.

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Artigo publicado em minha coluna no caderno Aliás, do “Estadão”.

Terrorismo: barbárie em estado puro

1469905451647Seria imperdoável recorrer ao humor negro e afirmar que existe justiça poética nisso, mas é um fato que, do ponto de vista etimológico, a transformação da França em alvo preferencial do extremismo islâmico nos últimos tempos – uma preferência reiterada de forma dantesca na noite de 14 de julho em Nice – leva a palavra “terrorismo” de volta para casa. O primeiro registro de terrorisme data de 1794, segundo o dicionário Trésor de la Langue Française, com o sentido de “doutrina dos partidários do Terror”.

Esse Terror com inicial maiúscula tem sentido histórico preciso. Já não se tratava do terror como substantivo comum, palavra herdada do latim terror com o significado de “medo intenso, pavor, espanto”. Estamos falando do Terror como política sistemática, nome do sangrento período da Revolução Francesa liderado por Maximilien de Robespierre, o radical líder dos jacobinos.

No breve intervalo que entrou para a história com o nome de Reino do Terror (1793-1794), milhares de pessoas morreram na guilhotina. A ideia era essa mesmo: inspirar medo para ter poder. “Se a base de um governo popular em tempos de paz é a virtude, sua base em tempos de revolução é a virtude e o terror – virtude sem a qual o terror seria barbárie, e terror sem o qual a virtude seria impotente”, discursou Robespierre pouco antes de, apeado do poder, provar também daquele remédio de perder a cabeça.

A “virtude” que Robespierre supunha capaz de cancelar milagrosamente a barbárie, legitimando o assassinato em massa, está ausente da sóbria e abrangente definição de “terrorismo” feita pela Enciclopédia Britânica. Ainda bem. O “uso sistemático da violência para criar um clima de medo generalizado numa população e dessa forma atingir determinado objetivo político” já era uma arma usada na antiguidade, de acordo com o mesmo verbete.

A verdade é que não parece descabido supor que a disseminação do pavor como forma de dominação seja uma prática tão antiga quanto a humanidade. O que os latinos chamavam de terror belli, o “terror da guerra”, era em parte aparentemente gratuito. Voltado contra civis indefesos e portanto desprovido de sentido militar imediato, buscava minar o moral do inimigo, confundi-lo, levá-lo ao desespero ou a reagir de forma precipitada. Terrorismo, pois é. Só faltava o nome.

Isso não quer dizer que a palavra e seu sentido tenham permanecido invariáveis ao longo da história. Pelo contrário: o terrorismo tem muitas caras. “Embora normalmente se pense nele como uma forma de desestabilizar ou derrubar instituições políticas, o terror também tem sido empregado por governos contra seu próprio povo para suprimir o dissenso”, prossegue a Britânica.

De um ponto de vista cronológico, a frase poderia ser invertida: foi para batizar uma política de Estado, ainda que em período revolucionário, que a palavra surgiu no tempo de Robespierre. Mais tarde é que ela ficaria identificada sobretudo com as táticas de luta de grupos clandestinos ou marginalizados que desafiam o poder estabelecido. A palavra terrorism, importada do francês, foi empregada pela primeira vez na língua inglesa em referência à revolta irlandesa de 1798. Anarquistas russos em luta violenta contra o czar, na segunda metade do século XIX, também mereceram o rótulo de terroristas.

E ainda nem falamos de expansões semânticas mais livres, como as que ocorrem por manipulação política ou amor à metáfora. Termo carregado de conotações negativas, “terrorista” tem sido visto com frequência, em determinados momentos históricos, travando uma guerra no plano vocabular com o mais positivo “guerrilheiro”. Os membros das organizações armadas que lutaram contra a ditadura militar brasileira nos anos 1960-70, por exemplo, eram chamados de “terroristas” pelos partidários do governo, ainda que a definição clássica de terrorismo – a busca da instauração de um “clima de medo generalizado numa população” – não viesse bem ao caso.

Quanto aos sentidos assumidamente figurados, a mesma língua francesa que lhe serviu de berço viu surgir no século XIX uma série de empregos em que a palavra aparecia como sinônimo de uma postura de intolerância ou intimidação no campo das ideias ou das crenças religiosas. Trata-se aqui de um terrorismo simbólico, que dispensa o derramamento de sangue. Foi nesse espírito que o filósofo Jean-Paul Sartre pôde falar em 1947 – a propósito do romance “O estrangeiro”, de Albert Camus – em “terrorismo literário”.

Se algo positivo pode ser destacado na onda de atentados contra civis praticados pelo Estado Islâmico – ou por franco-atiradores conhecidos como “lobos solitários”, com o incentivo explícito do EI –, trata-se de sua contribuição à clareza da linguagem política. Ao abraçar o “uso sistemático da violência para criar um clima de medo generalizado e dessa forma atingir determinado objetivo político”, o EI limpa o terreno de entulhos metafóricos e restaura o significado mais puro da palavra. Aquele em que, com nitidez e para além de qualquer relativização, o terrorismo se revela como o que Robespierre tentou negar que fosse: barbárie.

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Artigo publicado em minha coluna no caderno Aliás, do “Estadão”.

Calamidade: a geada é dispensável

Calamidade, todo mundo sabe, é catástrofe. O dicionário Houaiss esmiúça seu sentido assim: “grande perda, dano, desgraça, destruição, especialmente a que atinge uma vasta área ou grande número de pessoas”. O estrago calamitoso vem da antiguidade e, pelo menos no começo, era provocado por fenômenos naturais: o substantivo latino calamitas aparece no clássico dicionário Saraiva com o sentido principal de “perda das colheitas causada pela geada”.

Não se trata, claro, de dizer que essa é sua única aplicação correta. Raríssimas palavras passam a vida confinadas no bercinho semântico em que nasceram, e já ao desembarcar no português, nos últimos anos do século 16, a calamidade tinha se expandido para abranger desgraças variadas. Nenhuma delas envolvia àquela altura gestão desastrosa, gastos maiores que a arrecadação, atraso de salários, corrupção crônica, serviços públicos à míngua, irresponsabilidade fiscal e compromisso deslumbrado com um evento caro demais para o orçamento da casa. Mas também isso mudou.

A calamidade que se abateu sobre o estado do Rio de Janeiro às vésperas dos Jogos Olímpicos dispensou por completo a contribuição dos fenômenos naturais, a menos que, injustamente, se ponha na conta do mar bravio – e não da incompetência, neste caso do poder municipal – o desabamento da ciclovia de São Conrado. Aquele escandaloso sinal de calamidade foi enviado ao mundo quase dois meses antes do decreto no qual, na sexta-feira 17, o governador em exercício Francisco Dornelles oficializou o deus nos acuda. Ou, para ser preciso, o Brasília nos acuda. Já na última terça, 21, o Planalto anunciou um “apoio financeiro” de R$ 2,9 bilhões ao governo fluminense para que ele leve a cabo a preparação do Rio de Janeiro para as Olimpíadas.

Como se não bastasse a epidemia de zika, a decretação do estado de calamidade pública é propaganda negativa para um evento gerador de turismo, mas não disfarça sua esperteza no campo legal ao determinar a suspensão temporária de ritos e processos administrativos que em condições normais impediriam um estado inadimplente de receber empréstimos e remanejar recursos já destinados a outras áreas. O texto assinado por Dornelles menciona como justificativas para o ato extremo a “grave crise econômica” e a “queda da arrecadação, principalmente a observada no ICMS e nos royalties e participações especiais do petróleo”. Queixa-se da “interrupção da prestação de serviços públicos essenciais” e acena com a perspectiva de “total colapso na segurança pública, na saúde, na educação, na mobilidade e na gestão ambiental”.

Nada disso é pouco. Tudo isso está ausente da definição que o Houaiss apresenta para “calamidade pública”, essa figura do vocabulário jurídico: “interrupção da vida normal de uma coletividade, por efeito de desgraça pública, catástrofe ou desastre decorrentes de fenômenos naturais ou de lutas armadas”. Na falta de geadas, furacões e guerras, servem políticos mesmo. Além da pindaíba carioca e fluminense, isso acaba de ser demonstrado também pelo tiro no pé dado pela Grã-Bretanha ao votar a favor de seu desligamento da Europa – mais um motivo para fazer de calamidade a Palavra do Mês.

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A história do termo não chega a ser calamitosa, mas passa longe de ser segura. Etimologia nunca foi ciência exata.

Antigamente era considerado pacífico entre os estudiosos que seu radical provinha do latim calamus, este por sua vez um decalque do grego kálamos, “haste, cana, junco” – o mesmo sentido principal que ainda hoje conserva em nossa língua a pouco usada palavra “cálamo”. Mas qual é a relação entre o talo da planta e o desastre, a hecatombe, a praga? Bem, calamitas seria “o prejuízo causado por um temporal, por uma saraivada que quebrasse as hastes verdes do trigo” (palavras do filólogo brasileiro Antenor Nascentes), deixando no chão da lavoura um desolador tapete de cálamos partidos. Calamidade.

A tese foi abraçada por pesos pesados da matéria, como o catalão Joan Corominas, e ainda hoje pode ser considerada dominante. Uma hipótese alternativa é que “calamidade” teria um parentesco perdido com “incólume”, ou seja, intacto. Convenhamos que a tese do cálamo faz muito mais sentido para os leigos – mas isto, embora possa ser visto como vantagem, é o ponto em que se apegam os revisionistas da calamidade. Um destes é o linguista austríaco Alois Walde, que considerava o elo pastoril com os cálamos um exemplo de “etimologia popular”, como os estudiosos chamam as associações que o povo estabelece entre uma palavra nova e outra já conhecida em resposta a semelhanças fortuitas de som e sentido.

Muitas vezes essas ligações imaginárias interferem no desenvolvimento do vocábulo recém-chegado, mas não estão em sua origem. Um exemplo clássico de etimologia popular é “floresta”, que o português foi buscar no século 14 no francês antigo forest (hoje forêt). No princípio de sua aclimatação na Península Ibérica, a palavra era furesta ou foresta. Ocorre que muitos ouvintes achavam que teria alguma coisa a ver com “flor”. Não tinha, mas passou a ter.

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Publicado em minha coluna no caderno Aliás, do “Estadão”.

Temer e a mesóclise: o homem pronominal

1464402647946O país passou sem escala dos anacolutos de Dilma Rousseff às mesóclises de Michel Temer. De um ponto de vista (digamos) psíquico-gramatical, a mudança faz o desfavor de sugerir que não há meio termo para o ser brasileiro: ou tropeçamos a cada passo na desestruturação lógica e sintática, tentando fazer com que palavras e coisas se encaixem a golpes de marreta, ou caímos na cafonice bacharelesca que azeita as engrenagens do discurso enquanto o afasta da fala popular e o torna marotamente difícil, concebido menos para se comunicar com cidadãos do que para mesmerizar multidões. Em algum lugar profundo de nossa mentalidade, há uma placa de bronze na qual, sob uma efígie de Rui Barbosa e com nota de rodapé informando tratar-se de tradução do latim, está gravada esta mentira: “Falar enrolado é sinal de uma inteligência superior”.

Sim, este artigo trata de uma mera questão de forma. Em primeiro lugar porque por trás desta, se procurarmos bem, sempre há belos nacos de conteúdo. Mas não é só isso. Num momento em que o provocador Sérgio Machado faz o papel daquela mulher canastronamente oferecida do “teste de fidelidade” da TV e convida todos a confessar seus pecados, revestindo as tramoias brasilienses de um ar chanchadeiro, começa a se esboçar para a história do impeachment um enredo em que todos os lados da guerra política se igualam no objetivo de salvar a própria pele da ameaça representada por um intruso togado que não sabe brincar. Perde força até entre dilmistas de carteirinha a tese do “golpe judiciário-midiático”, sobe a da “frente ampla do abafa”. Num contexto político em que distinções clássicas de conteúdo tendem a virar geleia, afogadas no tacho do fisiologismo universal, prestar atenção às diferenças de forma talvez ganhe ainda mais importância.

“Procurarei não errar, mas, se o fizer, consertá-lo-ei”, disse Michel Temer na última terça-feira, ao anunciar suas primeiras medidas econômicas ao lado do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Para seu crédito, deu uma risadinha após a tirada de intercalar o pronome oblíquo átono entre o radical e a desinência de “consertarei”. Reconhecia assim o que já virou a principal marca de seu estilo. Desde o “sê-lo-ia” do discurso de posse, dia 12, vinha angariando elogios e críticas. Houve quem se derretesse pelo domínio linguístico demonstrado pelo sucessor de uma presidente incapaz de juntar lé com cré. Houve quem apontasse o descompasso entre aquela ostentação mesoclítica e os pequenos deslizes gramaticais que Temer de fato comete para defender a tese de um retrocesso de comunicação entre o “coloquialismo” de Dilma e a pompa do presidente interino.

A mesóclise é a colocação do pronome oblíquo átono no meio do verbo, interposto a ele, em vez de antes (próclise) ou depois (ênclise). Ocorre apenas com formas verbais do futuro (“consertá-lo-ei”) e do futuro do pretérito (“sê-lo-ia”). No português brasileiro moderno, é basicamente entulho, uma peça do ferro-velho gramatical. Isso não quer dizer que não se deva estudá-la nas escolas: é preciso, sim, conhecer a história da língua e ter instrumentos para ler sem susto textos de épocas diversas, não só o que se publica hoje na internet. Também não significa que a mesóclise seja inteiramente destituída de aplicação contemporânea: para o humor, como sátira do discurso de um personagem antiquado ou metido a besta, é recurso muito eficaz. Além disso, como demonstra Temer, sua utilidade é inegável para quem deseja ser um personagem antiquado ou metido a besta.

Jânio Quadros, o presidente brasileiro que mais abusou da mesóclise, também lançava mão da linguagem formal para compor um estilo, mas parecia pôr mais humor na receita: ser o que chamamos hoje de “figura” estava em seus planos. Tanto que, personagem maior que a vida, entrou para o folclore político como autor de frases que nunca disse: “Fi-lo porque qui-lo”, por exemplo, em que o “porque” (que deveria atrair o pronome) torna a segunda ênclise um erro feio. O risco maior, no caso de Temer, nem é o de soar como um político da República Velha, algo que ele parece até desejar. É ser abatido precocemente pelos sucessivos erros de seu governo e entrar para a história como o homem-mesóclise: aquele que foi intercalado brevemente entre as duas metades do segundo mandato de Dilma.

Mais que gramatical, o problema da mesóclise é de cultura. Faz mais de meio século que os linguistas sabem disso: colocação de pronomes não é camisa de força sintática. Depende da fonética, do uso, da história, do estilo de cada comunidade de falantes. Mesmo assim, os ultraconservadores insistem em impor a colocação lusitana como padrão, traço de subserviência cultural que chega a ser incompreensível, para não dizer imperdoável, quase um século depois da Semana de Arte Moderna. “É urgente afastar a ideia de que a colocação brasileira é inferior à que os portugueses observam”, escreve o autor da Moderna Gramática Portuguesa. Um radical? Longe disso: aos 88 anos, membro da Academia Brasileira de Letras, Evanildo Bechara é o mais respeitado gramático brasileiro vivo.

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Artigo publicado em minha coluna no caderno Aliás do Estadão.

Ressaca: da euforia ao mal-estar

1462093326175Os famosos “olhos de ressaca” de Capitu, uma das imagens mais famosas da literatura brasileira, não parecem dever nada ao mal-estar generalizado que acomete quem bebeu demais na véspera. Digo que não parecem porque, tratando-se de Machado de Assis, a cautela recomenda evitar afirmações categóricas: empacotar o máximo de sentido em um mínimo de palavras era com ele mesmo. Mas tudo indica que a acepção alcoólica de ressaca só surgiu no século 20, o que deixa para as botucas da titilante personagem de Dom Casmurro, romance lançado em 1899, apenas o sentido que o Houaiss define como “forte movimento das ondas sobre si mesmas, resultante de mar muito agitado, quando se chocam contra obstáculos no litoral”.

Ou seja: aquilo que açoitou a costa do Rio de Janeiro no último dia 21, feriado de Tiradentes, e que levou embora um naco da recém-inaugurada ciclovia Tim Maia, duas vidas humanas e o resto de credibilidade que o prefeito Eduardo Paes tinha como mestre de obras da “Cidade Olímpica”. Aí, sim, podemos garantir que à ressaca literal se somou a figurada. E que esta dor de cabeça não passará tão cedo.

Machado era um craque em trabalhar com ambiguidades, a começar pela indeterminação eterna que gira como uma ventoinha no coração de sua obra-prima, condenando os leitores a jamais saber se Capitu traiu ou não traiu Bentinho (minha opinião é que, se traiu, foi bem feito). No caso do olhar da moça, porém, a imagem marítima é explícita: “Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca”, diz o doutor Bento Santiago sobre os olhos da jovem amada no trecho inicial do romance, quando tudo é calmaria. “Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.”

A ambiguidade vem mais tarde, infalível como a subida da maré. Sendo basicamente um canalha, o narrador nada confiável retoma lá na frente a mesma metáfora, mas agora sem a inocência dos tempos de namoro, ao descrever sua mulher ao lado do caixão do amigo Escobar – que morreu afogado numa ressaca, justamente – tentando tragar o defunto com os olhos como fizera o oceano.

Se nos faltam elementos para dizer quão recatada era a bela Capitu, uma coisa é certa: Machado ensina que ressacas provocam estragos materiais e fatalidades no litoral carioca pelo menos desde março de 1871, quando Escobar foi vaidosamente imprudente (“Tenho entrado com mares maiores, muito maiores”) e se afogou na praia do Flamengo. Em contagem mínima e conservadora, vaidade e imprudência são dois dos pecados por trás da tragédia da ciclovia Tim Maia.

É provável que devam ser acrescentados à lista uma incompetência técnica alarmante, a leitura deficiente de Machado de Assis e o desconhecimento da conturbada história da relação do Rio de Janeiro com suas ressacas (a de 1913 foi tão violenta que entrou para o território da lenda). O fato de a empreiteira Concremat, que realizou a obra a um custo de R$ 45 milhões, pertencer à família do secretário municipal de Turismo, Antônio Pedro Viegas Figueira de Mello, indica que essa lista pode ir mais longe. Seja como for, hora de passar à acepção figurada.

O mal-estar está para a bebedeira que o precede como a sujeira deixada na areia da praia está para a agitação do mar que a provocou. Os dicionários de português não registram essa acepção intermediária, mas em espanhol – língua onde fomos buscar a palavra no século 16 – resaca tem, entre outros, o sentido de “limo ou resíduos que o mar ou os rios deixam na margem depois de transbordar”. Afinal, a expressão saca y resaca quer dizer antes de mais nada “fluxo e refluxo” das ondas, seu movimento de leva-e-traz. Não por acaso, a incômoda acepção pós-orgia existe também na língua de Sancho Pança, que enxugava tonéis de vinho como poucos.

A ressaca alcoólica, bem como a moral, é portanto a conta deixada pela festa, o emaranhado nada divertido de resíduos que sobra na margem depois de passada a diversão. A mesma ideia está presente no inglês hangover, palavra que, não se ligando propriamente ao mar, compartilha com a ressaca tanto o sentido de resíduos deixados para trás quanto o de “dor de cabeça forte ou outros efeitos retardados da ingestão excessiva de álcool” (dicionário Oxford).

Estará justificado quem, procurando a origem da ressaca carioca e brasileira deste momento, retroceder além da euforia obreira de preparação para os Jogos Olímpicos e for bater na porranca nacionalista que, nos anos Lula, moveu a vitoriosa candidatura do Rio junto ao Comitê Olímpico Internacional e a própria ideia de que o Brasil, mais do que estar no caminho certo, já tinha chegado lá. Como provam nossa enrascada política e a ressaca moral que se seguiu à votação do impeachment na Câmara, com seu deprimente clima de circo, o país só podia estar bêbado. Haja Engov.

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Este artigo foi publicado em minha coluna no caderno Aliás do “Estadão”.

Cuidado: está vazando

O “vazamento” do discurso em que o vice-presidente Michel Temer fala do impeachment como se ele já estivesse aprovado na Câmara dos Deputados, na última segunda-feira, adiantou o relógio político brasileiro em pelo menos uma semana. O salto no tempo teria sido acidental, alegou Temer em sua defesa, mas a probabilidade sugere o contrário. Na política – em oposição à mecânica dos fluidos, campo onde a palavra nasceu com sentido literal – vazamentos raramente ocorrem por acidente.

O que não se discute é que, por cálculo ou não, o homem que no dia seguinte Dilma Rousseff chamaria de traidor e “chefe conspirador” teve naquele momento uma ejaculação precoce monumental, comparável à de Fernando Henrique Cardoso em 1985, ao se sentar antes da hora na cadeira de prefeito de São Paulo que Jânio Quadros acabaria por lhe tomar nas urnas. (Quem achou de mau gosto a metáfora sexual deve levar em conta que, precoce ou pontual, a ejaculação é sempre uma forma de vazamento.)

Escalado em geral no papel de vilão, o substantivo “vazamento” é uma das estrelas do vocabulário da atual crise política. Há pouco mais de um mês, Eugênio Bucci criticou neste caderno o abuso que ele vem sofrendo no discurso governista, que sova a tecla da “ilegalidade” na tentativa de desqualificar o trabalho de jornalistas dedicados a expor a trama de corrupção em que o país foi enredado. “Até podemos chamar de ‘vazamento’ a informação sigilosa que desliza, por algum motivo, para fora do âmbito de controle do poder”, escreveu Bucci, “mas não podemos chamar de ‘vazamento’ uma reportagem, mesmo que, para a realização dessa reportagem, possa ter sido usado o conteúdo informativo de um ‘vazamento’. O nome de reportagem é reportagem.”

Ocorre que a ética do vazamento é cambiante por natureza. Sempre negativo pela lógica da cápsula político-administrativa que busca resguardar o sigilo de determinada informação, ele pode ter valor positivo no ambiente social do lado de fora. Nem tudo o que vaza é ouro, claro, mas tal ambiguidade está na raiz de muitas das páginas mais gloriosas do jornalismo. E como será que se deu o vazamento semântico que conduziu a palavra da acepção de “ato ou efeito de vazar” para a de “ato de fazer-se pública uma notícia que não deveria ser divulgada” (definição do Houaiss)?

Quando recuamos o suficiente na história, encontramos lá no início os termos latinos vacuus e vacare (“estar vago”). Se o DNA desses antepassados é facilmente reconhecível em termos como “vácuo”, “evacuação” e “vaga”, o caso de vazamento envolve uma árvore genealógica mais tortuosa. Foi o adjetivo vacivus (“esvaziado”, derivado de vacare) que, tendo gerado no século XIII nosso “vazio”, tornou-se cerca de cem anos depois, em formação exclusivamente portuguesa, avô de “vazar”.

Daí para o substantivo “vazamento” a distância era de um mero sufixo, mas nem tudo é tão simples quando se brinca de Lego com palavras. Houve uma gestação de meio milênio até que as demandas técnico-científicas do século XIX fizessem nascer “vazamento”, a princípio um termo restrito ao universo físico, destinado a batizar escapes frequentemente acidentais (vazamento de gás, de água etc.), mas também programados (de metal líquido em siderúrgicas, do forno para as fôrmas).

A ideia de algo que escapa de um recipiente vedado, fugindo ao controle de quem deveria guardá-lo, parece óbvia aos falantes de hoje quando se trata de informação. A metáfora é cristalina mesmo, mas também aí existe uma história. É provável que o primeiro passo nesse sentido tenha sido dado na França com uma palavra ligeiramente diferente: fuite, que em sentido primário significa “fuga”, mas também usada desde meados do século XIX na acepção de escapamento de gás ou líquido. Em um texto de 1899 assinado pelo futuro primeiro-ministro Georges Clemenceau, o substantivo fuite foi empregado – supostamente pela primeira vez – para designar a divulgação de documentos secretos do ministério da Guerra.

Não se deve descartar também uma influência do inglês leak, palavra que compartilha com nosso “vazamento” a maioria das acepções, das literais às figuradas, e que passou a ser empregada com o sentido de “divulgação de informação secreta” em meados do século XX – anteontem, portanto. Seja como for, é incerta a data de estreia de tal acepção em português. O bom Dicionário de Usos do Português do Brasil, de Francisco S. Borba, traz um exemplo colhido em dezembro de 1979 no jornal maranhense O Imparcial.

Curiosamente, a frase trata de “vazamentos no sucedâneo da Arena”, ou seja, o PDS, partido que naquele momento, extinto o bipartidarismo, acabava de tomar o lugar da agremiação política de apoio à ditadura – e que mais tarde se bifurcaria em siglas correspondentes aos atuais DEM e PP. A acepção de “quebra de sigilo” já circulava antes disso entre nós, mas há justiça poética no fato de que seu registro mais antigo num dicionário data de um regime de força, aquele que, tendo menos transparência, torna os vazamentos mais bem-vindos.

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Este artigo foi publicado em minha coluna no caderno Aliás do “Estado de S.Paulo”.

‘Republicano’ virou palavra mágica

75O adjetivo “republicano” tem feito hora extra no vocabulário de nossa crise político-econômico-institucional-moral-nervosa. Palavra fetichista, circula por aí pavoneando uma sobra de sentido, uma cauda de conotações positivas, saudáveis, graves – e vagas, como convém à mistificação. Nem os melhores dicionários, sempre atrasados, registram o fenômeno. Para os lexicógrafos sem imaginação, republicano é simplesmente aquilo que diz respeito à república, palavra que todo mundo sabe ter vindo do latim res publica (“coisa pública”) e que, historicamente, se opõe à monarquia como forma de governo.

Agora vejamos: ao afirmar que tinha “teor republicano” a conversa telefônica grampeada entre a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, será que a nota divulgada pelo Palácio do Planalto no último dia 16 queria negar boatos de uma conspiração petista para coroar Lula I? E quando, na terça-feira (22), o senador tucano Aécio Neves alegou ter se encontrado com o vice-presidente Michel Temer para uma “conversa republicana”, estaria se defendendo da suspeita de tramar com o presidente do PMDB a volta dos Orléans e Bragança?

Evidentemente, “republicano” não entrou em nenhum dos dois contextos com seu significado primário. Estava ali como palavra mágica do momento, saco de virtudes que, espremido, quase não rende caldo. Se a nota do Planalto qualificasse a conversa de Dilma e Lula como normal, legal, legítima, transparente, respeitável, impoluta, desprovida de malícia, rotineira, burocrática, banal, de comadres, superbacana ou até, para resumir, honesta, o efeito seria o mesmo: negar uma conduta escusa.

Sinônimos semelhantes poderiam ter sido empregados por Aécio, também interessado em refutar movimentos condenáveis. Como ocorre do lado negativo do vocabulário com o termo “fascista”, que cada vez mais perde sua carga histórica de sentido para virar um xingamento político pastoso, o equivalente de “bobo e feio” numa briga de crianças, o elogiosíssimo “republicano” vai ficando cada vez mais parecido com “bonito e legal”.

Os lexicógrafos têm um nome para termos assim, que viram guarda-chuvas de sentidos e perdem em precisão o que ganham em abrangência: palavras-ônibus. Já faz alguns anos que esse ônibus deixou a estação. Em 2005, o advogado Márcio Thomaz Bastos, então ministro da Justiça do primeiro governo Lula, foi visto reivindicando para si a honra de maior propagador do adjetivo “republicano”, súmula dos valores que gostaria de ver fortalecidos em nossa cultura político-administrativa.

Honra duvidosa: em 2014, antes de virar ministra da Agricultura de Dilma, a senadora ruralista Kátia Abreu (PMDB) lamentou que a palavra fosse usada para expressar “o seu avesso” – no caso, “a ação de ONGs e sindicatos no interior da máquina estatal”. Convém incluir na conta o avesso do avesso também. O uso frouxo de “republicano” por todos os lados do atual arranca-rabo político, como estandarte único de projetos e comportamentos opostos, basta para atestar a falta de seriedade da palavra.

Isso não quer dizer que seja impossível trazer esse adjetivo para o debate contemporâneo sem barateá-lo. Talvez seja até obrigatório em nosso quadro atual de desarranjo cognitivo. Mas convém levar em conta que o tributo pago ao rigor é alto. Autor do fundamental Os bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi (Companhia das Letras), o historiador José Murilo de Carvalho detectou antes dos dicionaristas a ânsia de espalhamento semântico da palavra e escreveu para o jornal O Globo, em 2009, um artigo em que reflete sobre o que seria “ser republicano”.

Eis alguns dos atributos que listou: “É crer na lei como garantia da liberdade. É saber que o Estado não é uma extensão da família, um clube de amigos, um grupo de companheiros. É repudiar práticas patrimonialistas, clientelistas, familistas, paternalistas, nepotistas, corporativistas. É acreditar que o Estado não tem dinheiro, que ele apenas administra o dinheiro pago pelo contribuinte. (…) É não praticar nem solicitar jeitinhos, empenhos, pistolões, favores, proteções”.

A conclusão de Carvalho, ilustrada com uma frase de 1663 do padre jesuíta Simão de Vasconcelos (“Nenhum homem nesta terra é repúblico”), não poderia ser mais implacável: “Ser republicano é não ser brasileiro”. Pode haver certo exagero nisso. Difícil é negar que os critérios do historiador, aplicados à crise de hoje, não deixariam de pé um único combatente.

Talvez seja o caso de recuar dois passos e pensar numa frase atribuída a Confúcio: “Se a linguagem não está de acordo com a verdade das coisas, nada chega a bom termo”. É provável que o adjetivo “republicano” jamais se sinta à vontade no papel de sinônimo daquilo que há de mais decente e favorável à cidadania em determinado ambiente político. Fará algum sentido, afinal, jogar tanto peso no lombo de uma palavra volúvel que ao longo da história foi capaz de se associar a regimes como o da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o da República Islâmica do Irã, o da República Bolivariana da Venezuela e o da República de Uganda – inclusive na fase do abominável Idi Amin Dada? E que ultimamente tem sido vista no noticiário internacional a tiracolo de Donald Trump?

Parece sábio deixar “republicano” em paz, antes que o cidadão médio comece a refletir sobre o que haverá de tão errado com a monarquista Holanda.

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Este artigo foi publicado em minha coluna no caderno Aliás do “Estado de S.Paulo”.

Marqueteiro, um fracasso de ‘branding’

1456592513537Estamos naquela proverbial casa de ferreiro. É irônico que os marqueteiros, tão poderosos na hora de influenciar o rumo das multidões diante das urnas ou das prateleiras de um supermercado, sejam impotentes quando se trata de fazer o branding da própria atividade. O fato embaraçoso é que são – e, como em todo episódio de impotência, não adianta fingir espanto: “Isso nunca me aconteceu antes!”. Não cola. Acontece faz tempo, e a cobertura jornalística da prisão de João Santana (foto), responsável pela campanha da reeleição de Lula em 2006 e pelas duas de Dilma Rousseff, em 2010 e 2014, voltou a confirmar com ampla folga: “marqueteiro” é a palavra eleita pelo português brasileiro para designar o especialista em marketing, em especial o marketing político.

Não faz diferença que os próprios profissionais assim designados não gostem do nome, que consideram depreciativo. Sua luta para substituí-lo ora por marketista (ou marquetista), ora por marquetólogo (ou marketólogo), quando não por mercadólogo, esbarra numa dificuldade que Carlos Drummond de Andrade, no poema O lutador, resumiu assim: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã”. Marqueteiro está além da consagração.

Para começo de conversa, sejamos quantitativos. Uma rápida consulta ao Google, oráculo do nosso tempo, revela um massacre digno do que foi promovido pela seleção alemã no Mineirão: contra a avalanche de 1,6 milhão de páginas trazidas pelo vocábulo “marqueteiro” (às quais será preciso somar ainda as 179 mil da variante ortográfica “marketeiro”), temos “mercadólogo” em segundo lugar, com 358 mil ocorrências. Depois piora muito.

“Marketista” granjeia apenas 186 mil paginetas e o resto é vexame: na soma de “marketólogo” e “marquetólogo”, não se chega a oito mil. Quando se trata de nomear marqueteiros propriamente eleitorais, como João Santana, a fórmula composta “consultor político” goza de algum prestígio (131 mil resultados), mas tem a óbvia desvantagem da prolixidade. Soluções sucintas costumam vencer.

Será que os profissionais de marketing têm razão quando alegam que “marqueteiro” é uma palavra carregada de conotações pejorativas? Sem dúvida. Pelo menos era assim no início, como comprova sua acepção menos rigorosa de “pessoa de qualquer ramo de atividade que se dedica sobretudo a se autopromover” – acepção bastante difundida, mesmo porque o tipo humano que descreve é abundante, e responsável por parte das ocorrências mencionadas acima.

O sufixo “eiro” tem mesmo conotações vulgares, pouco cultivadas ou pelo menos não especializadas. Com exceção da palavra “engenheiro”, costuma indicar no mundo das profissões o terreno das atividades não intelectuais (em vez do jornalista, o jornaleiro) ou comicamente rebaixadas (no lugar do pianista, o pianeiro). Entende-se que o marqueteiro – que tem curso superior e ganha muito bem, seja no caixa um ou no caixa dois – não queira estar em semelhante companhia.

Ocorre que a língua é irritantemente soberana. Embora Brasil e Portugal tenham a mania de reformar a ortografia a canetadas a cada duas gerações, interferir em seus movimentos profundos de som e sentido está muito longe de ser tão simples quanto regular por lei a superfície gráfica das palavras. Remar contra a corrente do idioma pode ser tão frustrante quanto tentar estocar vento, como bem sabem os profissionais formados em engenharia elétrica, que em geral não gostam de ser chamados de “engenheiros elétricos” – o modo como a maioria dos falantes leigos se refere a eles, e que nada tem de errado – e tentam convencer a sociedade de que são “engenheiros eletricistas”.

(Desejo-lhes boa sorte, mas convém aprimorar o argumento ingênuo de que um engenheiro só seria elétrico se desse choque. O físico nuclear também não é radioativo e o guarda florestal não corre risco de desmatamento. Apenas herdam, como tantos profissionais, o adjetivo que distingue sua especialidade, algo que todos nós entendemos sem necessidade de explicação – a isso chamam “espírito da língua”.)

Resta compreender, enfim, por que o português brasileiro fez essa opção – impessoal, coletiva, mas opção – por um termo claramente depreciativo na hora de nomear os profissionais de marketing em geral e do marketing político em particular. Aqui arrisco, claro, mas não duvido que a resposta seja parecida com a seguinte.

Porque não estamos gostando nem um pouco da proeminência que publicitários e jornalistas transformados em babalorixás todo-poderosos ganharam no cenário eleitoral nas últimas décadas; porque, mesmo sabendo que guerra é guerra, coisa e tal, desconfiamos que vender políticos como se eles não fossem diferentes de marcas de sabão em pó vai acabar nos afogando a todos numa profusão de bolhas; porque talvez não haja muito que possamos fazer para devolver ao jogo eleitoral uma medida mínima de autenticidade, de espontaneidade, de integridade, mas existe uma coisa que podemos, sim, fazer. Chamar vocês de marqueteiros, isso podemos fazer. Seus marqueteiros!

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Este artigo foi publicado em minha coluna no caderno Aliás do “Estado de S.Paulo”.

Boicote: ecos da Irlanda rural agitam o Oscar

“Boicote” começou a virar a Palavra do Mês no último dia 18, quando o diretor Spike Lee anunciou que, mesmo tendo recebido um Oscar honorífico há dois meses, não comparecerá à cerimônia de entrega do grande prêmio do cinema americano no próximo dia 28. Motivo: pelo segundo ano consecutivo, não há um único negro entre os vinte atores que disputam estatuetas.

O diretor de Faça a coisa certa disse que não pretendia ser o líder de um movimento contrário à premiação da Academia de Artes e Ciências de Hollywood, mas observou que o cinema está atrasado em relação à música e ao esporte no combate ao racismo – o que é inegável – e invocou o poder da oratória de Martin Luther King: “Chega um tempo em que é preciso tomar uma posição que não é nem segura, nem política, nem popular, mas é preciso tomá-la porque a consciência nos diz que é a certa”.

Pronto. Entre nomes de menor peso, a adesão de Will Smith – arregimentado por sua mulher, a atriz Jada Pinkett Smith – deu ao time do protesto um astro de primeira grandeza e ajudou a garantir que a palavra “boicote” dominasse pelas duas semanas seguintes o noticiário de entretenimento nos EUA. As tradicionais especulações sobre filmes e atores favoritos, que a esta altura deveriam estar pegando fogo? Relegadas a um frio segundo plano.

Ian McKellen, gay militante, lembrou que a discriminação em Hollywood atinge os homossexuais também. A alva Charlotte Rampling, uma das concorrentes, apontou “racismo contra os brancos” no boicote – ideia que, mais do que questionável, é burrinha mesmo, equivalente a dizer que feminismo e machismo são só dois lados da mesma moeda.

Isso não significa que a questão seja desprovida de matizes cinzentos entre preto e branco. Hollywood é uma indústria portadora de menos melanina do que a média da sociedade americana, sem dúvida, mas o problema vai além do que Spike Lee apontou: também não há hispânicos ou asiáticos concorrendo este ano ao bonequinho careca, embora estes levem a desvantagem de ser menos curtidos do que os negros numa tradição de luta por igualdade de direitos.

Seja como for, até o presidente Barack Obama entrou no debate, dizendo que a diversidade é melhor para a arte. E hoje a especulação mais excitante no arraial de Los Angeles gira em torno do que dirá sobre o bafafá o comediante Chris Rock, mestre de cerimônias negro de uma festa branquíssima. Há quem lhe cobre adesão ao boicote – o que seria bombástico, mas parece improvável. De piadas polêmicas envolvendo os nomes citados acima será difícil escapar.

A Academia acusou o golpe. Não chegou ao extremo de instituir uma política de cotas para os indicados, ainda bem, mas fez mais do que vagas promessas de justiça: anunciou medidas para rejuvenescer e abrir às minorias o elenco de 6.261 membros com direito a voto (hoje estima-se que mais de 90% sejam brancos, com a idade média acima de 60 anos), revogando a vitaliciedade automática. Em outras palavras: quem ficar inativo por mais de uma década dança. (Até o momento não há sinais de um boicote proposto por atores e cineastas da terceira idade, mas talvez seja questão de tempo.)

Tudo isso volta a demonstrar o que ficou fartamente provado desde que a palavra inglesa boycott ganhou seu primeiro registro como substantivo comum, em fins do século 19: a coisa costuma funcionar. Que o diga o homem que batizou – à sua revelia, é verdade – essa forma de protesto.

O inglês Charles Cunningham Boycott (1832-1897), capitão reformado do exército britânico, trabalhava como administrador das vastas extensões de terra de um nobre inglês no oeste da Irlanda quando bateu de frente com a Irish Land League, o combativo sindicato de trabalhadores rurais, que lutava pela redução dos custos de arrendamento para seus associados. Corria o ano de 1880, momento histórico de grande agitação política e sindical em diversas partes do mundo. O milico não quis saber de conversa. Nem um penny a menos, decretou.

Não terá sido o primeiro boicote da história, mas foi o que primeiro ganhou o nome de boycott (a palavra chegaria ao português, com a grafia já aclimatada, em 1913). Os arrendatários de Boycott foram os primeiros a aderir ao gelo comandado pela Irish Land League, recusando-se a trabalhar para ele. Não demorou para que o movimento se espalhasse: logo lhe negavam atendimento no comércio local e até sua correspondência deixou de chegar.

O caso chamou a atenção da grande imprensa londrina, que lhe deu intensa cobertura de viés nacionalista, torcendo por Boycott. Não adiantou. A colheita nas terras administradas pelo homem foi feita com atraso por trabalhadores trazidos de longe, sob a proteção de centenas de soldados ingleses. Poucos meses depois, Boycott foi embora da Irlanda para nunca mais voltar.

O caso é tão interessante que admira não ter virado até hoje um dramalhão histórico hollywoodiano. Quem sabe algum produtor abra o olho agora que a palavra “boicote” roubou a cena. Difícil será encontrar papel para um ator negro nessa história.

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Este artigo foi publicado em minha coluna no caderno Aliás do “Estado de S.Paulo”.