Coitada da Norma, tão culta…

vovó-piupiu-brava– E a Norma, hein?

– O que é que tem?

– Você não soube? Anda mal falada.

– A Norma? Depois de velha? Mas ela é tão culta!

– Pois é. E com aquela pose toda, a mania de ditar regrinhas de bom comportamento, de corrigir todo mundo…

– Mas o que foi que aconteceu?

– Ora, o que aconteceu é que caiu a máscara da madame, né? Descobriram finalmente como ela é autoritária, elitista e preconceituosa. E pior, arbitrária, totalmente desconectada da realidade.

– Puxa, eu sempre achei a Norma tão correta…

– Correta demais, aí é que está. Era para desconfiar, acho que demorou. Parece que até aqueles amigos que ela se orgulhava de ter no ministério andam virando a cara para ela.

– Ah, coitada. Eu sinto pena.

– Pois eu acho ótimo. Nunca fiquei à vontade na presença da dona, sabia? Muitas vezes aconteceu de eu ter alguma coisa importante para falar e ficar com medo. Preferia nem abrir a boca.

– Isso é verdade, a Norma sempre foi difícil.

– Tá vendo? Nem você, que é meio puxa-saco, está disposto a defender a megera!

– Estou sim, defendo sim. E você? Fica aí esculachando mas até que está se expressando direitinho, do jeito que ela gosta.

– Eu?

– Você.

– Ah, você não viu nada, meu amigo. A gente vamos barbarizar!

‘Porque’ ou ‘por que’? Uma armadilha bem brasileira

porque sim fotolia1. “Analisando essa reforma ministerial, eu me pergunto porque a presidente, que tem fama de esquentada, não deu logo um soco na mesa.”

2. “Você pensa que está a salvo da crise só por que é funcionário público?”

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O uso equivocado de “porque” e “por que” nas frases acima (sim, eles deveriam trocar de lugar) se deve a uma das armadilhas mais traiçoeiras do português brasileiro.

Aprendemos na escola uma regrinha simples: “por que” é usado em construções interrogativas e “porque”, conjunção explicativa ou causal, em construções afirmativas.

Como regra geral, vale. O problema é achar que o ponto de interrogação liquida a questão: se existe, é “por que”; se não existe, “porque”. Não é bem assim – ou nem sempre é assim.

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A frase 1 não tem ponto de interrogação, mas é interrogativa. Interrogativa indireta é como a classificam. O macete aqui é fazer o teste da razão: usamos duas palavras separadas quando for possível substituir “por que” por “por que razão”: “…me pergunto por que (razão) a presidente não deu um soco na mesa”.

Repare que também se usa “por que” numa construção semelhante, mas não interrogativa: “Analisando a reforma ministerial, você entende por que (razão) os eleitores do governo se sentem traídos”.

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O exemplo 2 traz o problema oposto: temos uma interrogação clara, mas a oração introduzida pela conjunção “porque” não faz parte dela. O verbo que se interroga é “pensar”, enquanto “é funcionário público”, fato inquestionável, pertence a uma possível resposta que a frase antecipa:

– Por que você pensa que está a salvo da crise?

– Porque sou funcionário público.

É por isso que aquele teste da razão dá negativo aqui: “…só por que razão é funcionário público” não faz o menor sentido. Portanto, escrevemos “…só porque é funcionário público”.

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Para quem fala inglês, outro truque útil é traduzir por why e because. No exemplo 1 temos why, “por que”. No 2, because, “porque”. Simples assim.

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Estamos falando de uma armadilha bem brasileira. Em Portugal é diferente: simplificaram, usam “porque” tanto na pergunta quanto na resposta. Menos uma casca de banana. Nossa gramática bem que podia ir atrás, mas no momento isso não parece estar no horizonte.

O recado do nome: Cunha, ‘formação militar de ataque’

Eduardo Cunha em foto de Marcelo Camargo (Agência Brasil)
Eduardo Cunha em foto de Marcelo Camargo (Agência Brasil)

Nome é destino? A literatura gosta de imaginar que sim. Com esse nome o Voldemort de Harry Potter só poderia ser vilão, e pela mesma razão a Clarissa de Erico Verissimo não teria como fugir ao figurino de ótima moça.

Claro que na vida real tudo se complica. A variedade do mundo inclui Simplícios enrolados, Salgados dulcíssimos, Bravos covardes, Magnos insignificantes, Belas feiosas etc. Sim, o nome pode até trazer um recado com sinal invertido. Mas nem sempre.

Cunha é uma velha palavra portuguesa (século 14) vinda do latim cuneus, “peça triangular de rachar madeira”. No vocabulário militar, nomeia há milênios uma formação de ataque, com as tropas desenhando um triângulo.

O Houaiss traz uma segunda acepção militar: “em estratégia, recurso pelo qual um exército logra introduzir componentes de sua tropa em território e/ou em meio a unidades particularmente vulneráveis do inimigo”.

Da guerra para a política, que é a guerra sem canhões: em Portugal, cunha tem ainda o sentido informal de “recomendação de pessoa influente”. Meter uma cunha é arranjar um pistolão. De modo figurado, encontramos aí a mesma ideia de forçar passagem, abrir caminho na marra.

O que isso prova? Ora, nada. Mesmo porque Celso, o gramático, é tão Cunha quanto Eduardo, o político. Mas brincar com palavras não paga imposto nem dá cadeia. Ainda.

Crise = perigo + oportunidade + papo furado

'Weiji' nas formas tradicional (linha de cima) e simplificada
‘Weiji’ nas formas tradicional (linha de cima) e simplificada

Toda crise é, segundo aquilo que o dicionário de lugares-comuns chamaria de “milenar sabedoria chinesa”, uma mistura de perigo e oportunidade, certo? Errado.

A ideia faz sucesso porque é reconfortante. Hoje no Brasil, por exemplo, não seria um consolo pensar que estamos afundados até o pescoço em excelentes oportunidades?

Infelizmente, não é verdade que a palavra chinesa weiji, “crise”, seja um ideograma formado pelo casamento do preocupante “perigo” (wei) com o promissor “oportunidade” (ji). Filólogos de mandarim não se cansam de denunciar o equívoco (aqui e aqui, por exemplo), mas ele tem sido duro na queda.

Embora signifique oportunidade quando se junta a hui para formar jihui, o ideograma ji, sozinho, nada tem de positivo. Entre seus sentidos está o de momento crucial. Bingo: “momento crucial de perigo” é uma boa definição de crise e uma tradução sóbria de weiji.

Dizem que a culpa original pelo sucesso do mal-entendido é do presidente americano John Kennedy (1917-1963), que gostava de repetir a lenda em seus discursos. Desde então, consultores empresariais, autores de livros de autoajuda e outros profissionais do lero-lero se revezam na missão de impedir que essa pérola erudita de plástico caia no esquecimento.

Lindo de morrer, lindo de viver

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– Querido, esse sapatinho de bebê não é lindo de viver? Pensei em comprar pro filhinho da Lívia.

– Concordo: lindo de morrer.

– De morrer, não. De viver!

– Lindo de viver não existe, meu amor.

– Ih, lá vem você!

– Eu me recuso a usar eufemismo de hipérbole. Ou é eufemismo ou é hipérbole. A pessoa tem que escolher.

– Não estou nem aí pra sua cartilha de português, sabichão.

– Entendo. Você prefere a cartilha da Hebe Camargo.

– Pensa um pouco: você acha que eu ia dar um sapatinho lindo de morrer para um bebê, uma pessoa que está começando a vida? Que tipo de mensagem eu estaria passando, hein?

– Está vendo? Agora você está morrendo de raiva de mim.

– Estou mesmo. Odeio esse seu lado pedante.

– E por que não diz que está vivendo de raiva?

– Não enche.

– Sabe por quê? Porque não faz o menor sentido, querida. Porque a ideia da hipérbole é justamente criar um absurdo que intensifique a mensagem, que dê colorido à expressão. Colorido às vezes até literal: azul de fome, verde de ciúme e tal. Se a ideia deixa de ser absurda para ser razoável, fofinha, a hipérbole perde o sentido. Quer dizer: esse sapatinho é tão lindo que você poderia morrer por ele.

– Não acho tão lindo assim. Não morreria por ele, nem perto disso. Vamos embora.

– Ei, não vai comprar?

– Desisti. Seu papo matou a beleza dele.

– Tudo bem.

– Às vezes você é tão chato que eu tenho vontade de cortar os pulsos, sabia?

– Parabéns, querida! Essa é a ideia!

‘Alunxs’ vale como provocação, mas que feio, Pedro II!

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Uma semana em que o tradicional Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, adere ao suposto novo gênero neutro defendido por grupos feministas e LGBTs e pespega um “alunxs” em aviso da coordenação (foto do Globo, que noticiou o caso aqui) é uma semana ruim para a língua brasileira.

Não porque se trate de um caso de “novilíngua à (sic) serviço da agenda gay marxista”, como esbravejou um site evangélico, ou outras bobagens do gênero.

Vamos reconhecer logo: como provocação, tomada de posição política, expressão iconoclasta da liberdade de moldar a língua, o xis vale. A arroba que também se usa com frequência no mesmo papel é uma solução claramente superior (“alun@s”), mas tudo bem. Valem os dois.

O problema é que, como proposta de intervenção gramatical, esse xis (ou essa arroba) tem tanto valor quanto um emoji, um coraçãozinho que significa “amo”, um blz no lugar de “beleza”. Isto é, valor nenhum. Por razões poderosas e puramente linguísticas, nada a ver com ideologia, está condenado a ser um modismo esquecido em futuro não muito distante, como esquecidas foram as travessuras linguísticas do Seu Creysson.

“Alunxs” é um termo agramatical que inverte a ordem natural dos fatores de qualquer língua (começa escrito para depois ser oral) e, o que é pior, fracassa antes de atingir a oralidade. Como se pronuncia isso? Como se escreve, tratando-se de um par de dois gêneros, algo simples como “os dois”? “Xs dxxs”? Mas que trágico esse genocídio das vogais numa língua que tanto as ama, não? E de que forma resolver as flexões mais complexas em que os gêneros exigem números diferentes de caracteres, como “alunos lindões e alunas lindonas”? “Alunxs lindoxs” ou “lindoxxs”? (Melhor evitar, pensando bem. Vão dizer que é assédio.)

Digamos que até aí esteja valendo. Nem só de gramática vive o homem (e a mulher e o transexual e todo o etc. do mundo). Pinta o bigode na Mona Lisa quem quiser, pois entre outras coisas a língua é isso mesmo: uma caixa de Lego para o falante e um campo de batalha simbólica para diferentes grupos de interesse.

O que torna a semana triste para o português brasileiro é ver um colégio respeitável como o Pedro II, onde lecionaram gramáticos do tamanho de Said Ali e Celso Cunha, entre outros, se render de forma acrítica ao modismo.

Não é este o papel de uma instituição de ensino que se leva a sério. Perdendo-se a chance de usar “alunxs” como ponto de partida para uma reflexão profunda sobre o idioma, quem vai explicar ao pessoal que todo esse barulho se baseia numa visão ingênua da língua (gênero gramatical é uma coisa, sexualidade é outra) e que o famoso “machismo ancestral” embutido no plural “alunos” é, do ponto de vista da gramática histórica, uma balela?

Com a palavra, o linguista Aldo Bizzocchi (artigo completo aqui):

…a razão pela qual usamos o gênero masculino para nos referir a homens e mulheres não é ideológica, mas fonética. Em latim, havia três gêneros – masculino, feminino e neutro –, cujas terminações mais frequentes eram ‑us, ‑a e ‑um. O chamado gênero complexo, que agrupa substantivos de gêneros diferentes, era indicado em latim pelo neutro.

Quando, por força da evolução fonética, as consoantes finais do latim se perderam, as terminações do masculino e do neutro se fundiram, resultando nas desinências portuguesas ‑o e ‑a, características da maioria das palavras masculinas e femininas, respectivamente. Ou seja, o nosso gênero masculino é também gênero neutro e complexo. Portanto, não há nada de ideológico, muito menos de machista, na concordância nominal do português.

Dito isso, e mandando a modéstia passear, acrescento que jamais será uma semana de todo ruim para o português brasileiro aquela que viu nascer um espaço virtual onde tudo isso pode ser debatido “sem caretice e sem vale-tudo” – bom, pelo menos eu tentei. Que venham as pedras inescapáveis.

Ninguém ‘possui’ a idade que tem. E possuo dito!

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Vícios bestas de linguagem são contagiosos em qualquer parte do mundo. Num país como o nosso, com índices tão altos de analfabetismo funcional e tão baixos de leitura, as barreiras imunológicas frangam mais. Tomar consciência do problema é a melhor vitamina.

O uso de possuir no lugar de ter é um dos vírus do momento. Semana passada, na página da rádio MEC FM no Facebook, lia-se que Mozart escreveu a ópera Idomeneo quando “possuía 25 anos de idade”. Um artigo acadêmico da área de pedagogia, escrito por doutores, afirma que alguém “possui uma dúvida”. São só dois exemplos – as ocorrências beiram o incontável.

Na raiz do modismo está a ideia torta de que possuir é um verbo mais bacana, mais nobre do que o humilde ter. O mesmo raciocínio que leva muita gente, principalmente quando escreve, a preferir palavras pomposas: esposo em vez de marido, automóvel por carro etc.

Só esse cacoete bacharelesco, velha mania nacional, já seria chato, mas as frases ali de cima têm um defeito pior. Possuir é sinônimo de ter, mas não é idêntico a ele. Sinônimos perfeitos não existem: mesmo quando o sentido deles coincide em todas as acepções (não é o caso aqui), restam as conotações, a aura de cada palavra. Nessas horas o ouvido é nosso melhor guia.

Possuir envolve posse. É um verbo mais solene, mais pesado, mais duradouro. Possui-se um bem ou valor (casa, carro, diploma). Possui-se um atributo que defina a personalidade do possuidor (inteligência, beleza, dom). Não se possui algo tão trivial quanto uma dúvida ou tão provisório quanto uma idade. Isso não possui (opa!) cabimento.

Em tais casos a palavra adequada é ter, um verbo leve, contingente e versátil. Ninguém vai estranhar se você disser que tem um violão, embora também pudesse dizer que o possui. Mas experimente dizer que possui calafrios quando vê a língua ser maltratada assim…

(A) que horas ela volta? (Em) que ano estamos mesmo?

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“Que horas ela volta?” O nome do filme indicado para representar o Brasil no Oscar tem um “erro de português”? Na língua culta, é evidente que sim. A gramática formal exigiria preposição: “A que horas ela volta”. Só que partir daí para dizer com ares alarmistas que o filme deixa o Brasil “mal na foto” – como fez neste artigo a jornalista Dad Squarisi, veterana colunista de português dos Diários Associados – é, este sim, um equívoco constrangedor. Revela visão curta sobre como a língua funciona.

O título do filme, tirado da fala de um personagem, está em registro coloquial. “Que ano você nasceu”, “Que série você estuda?” e frases do gênero são familiares a todos os brasileiros, mesmo os de alto grau de escolaridade. Falantes educados sabem – sem precisar pensar nisso – em que situações pega bem ou pega mal usá-las. Será preciso reafirmar a esta altura do século 21 que obras de arte têm liberdade para “transgressões” muito maiores?

Pretender que o título de um longa-metragem de ficção tenha obrigatoriamente o mesmo grau de formalidade de um editorial de jornal ou relatório de firma revela um jeito carrancudo e autoritário de compreender o funcionamento não só da língua, mas da arte também. Imagine (I can’t get no) Satisfaction, a famosa canção dos Rolling Stones, sendo corrigida pelo revisor da gravadora: “No, Mick, you CANNOT get ANY satisfaction”. E o que seria feito de “No meio do caminho tinha uma pedra”, o maravilhoso verso “errado” do Drummond?